segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Temporal

Chove. A fúria do vento não cessa. Batida pela sua vergasta, a chuva esparrinha na vidraça, varre a rua de lembranças concretas. E uma memória antiga, pesada de augúrio, levanta-se-me no seu clamor, memória escura, anterior à vida. Assim o que relembro não tem face nem nome, é a forma oca de um limiar indistinto, pura anunciação de presença, obscuro alarme de uma aparição. Num longe imaginado, passam os ventos em linha, massas de névoa deslizam sobre a terra abandonada, uma voz de espaço ressoa à minha atenção suspensa. O que é certo e imediato, o que me vem à boca e tem nome, o que é exacto e mensurável, refugia-se na timidez da penumbra e do silêncio, porque a voz obscura que me fala transcende o passado e o futuro, vibra verticalmente desde as minhas raízes até aos limites do universo, aí onde a lembrança é só pura expectativa despojada do seu contorno, é só pura interrogação. Nesta hora absoluta, conheço a vertigem da infinitude, o halo mais distante da minha presença no mundo...

in Vergílio Ferreira, Carta ao futuro, Bertrand Editora, Lisboa, 1985, p. 19-20

2 comentários:

  1. Grande escritor! Não conhecia este texto.

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  2. Foi a primeira obra que li de Vergílio Ferreira e pelo que me ensinou percebi que muito mais haveria a aprender. E de facto...

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