quinta-feira, 31 de março de 2016

Liberdade e verdade: tão longe

Nunca fui a Angola. Aliás nunca estive em África. Não foi para lá que os meus pais escolheram ir quando quiseram fugir da vida dura da aldeia onde nasceram. Nunca visitei a família que lá tinha nem a que continuo a ter. Não fui a Marrocos no início da idade adulta, como alguns amigos meus. Nunca passei férias em Cabo Verde. O mais próximo que estive desse continente foi quando, numa viagem pelo Sul de Espanha, andei pela zona de Gibraltar. 
Mas em todos os (ou em muitos) portugueses a ligação a alguns países africanos é evidente e alicerçada na História e em histórias individuais significativas. Mesmo assim, temos muita dificuldade em compreender muitas das coisas que se passam ali. São factores geográficos, históricos, antropológicos, que nos impedem de nos colocarmos no lugar dos africanos. São os factores económicos e políticos com contornos diferentes dos que guiam por aqui estas actividades. A mesma língua, as ligações familiares, as relações de trabalho, os negócios de grandes empresas que se entrelaçam cá e lá estão, no entanto, demasiado presentes para que nos possamos afastar do que se passa nesses países.
E esta semana, em Angola, aconteceu algo que podia ser descrito como incrível, inesperado, inimaginável mas que afinal, tendo em conta o que se sabe do regime angolano, não é nada dessas coisas: 17 pessoas foram condenadas a penas de prisão porque, diz o tribunal de Luanda, planeavam uma rebelião e portanto eram criminosos. Quem acompanhou o processo (e não era membro do tribunal, claro) destaca que, durante o julgamento, não foram apresentadas provas que justificassem as penas aplicadas. Pelo que se sabe de concreto aquele grupo de pessoas estavam juntas a discutir e a dar a sua opinião sobre o país e o seu presidente. Sim, foi isso que foi considerado um crime contra a segurança do Estado. A defesa irá recorrer. Mas será possível que o regime angolano se revele permeável aos argumentos e à pressão que lhe chega do exterior? O que é a opinião internacional para os que não consideram a opinião como um direito mas como um delito?
Afonso "M'banza Hanza", Albano Bingo Bingo, Arante Kivuvu, Benedito Jeremias, Domingos da Cruz, Fernando António Tomás, Hitler Tshikonde, Inocêncio de Brito, José Hata, Laurinda Gouveia, Luaty Beirão, Manuel Chivonde, Nélson Dibango, Nuno Dala, Osvalgo Caholo, Rosa Conde, Sedrick de Carvalho cometeram esse "grave delito" e por isso viram-se privados da sua liberdade.
As frases bonitas que se podem dizer e citar a propósito não terão nenhum impacto. Os posts em blogues também pouco terão. Mas, nestes dias, nunca tendo ido a Angola, não sendo eu representante do governo nem do parlamento;  mas apenas cliente de empresas em que o capital angolano está presente e estando a uma distância, física e de contexto político, bem confortável; apetece-me manifestar a minha tristeza não só pela incapacidade de um país lidar com as exigências dos regimes democráticos mas pelo facto de que os que mais deviam defender a verdade, dela se afastam de forma tão gritante. 

Ouvi-lo não será castigo suficiente?

Mesmo que seja por pouco tempo (esperamos!).

quarta-feira, 30 de março de 2016

"...não tinha nada a perder"

É uma foto estranha. Não é difícil perceber que quem quer que a tenha tirado fê-lo a pedido do homem que sorri de forma evidente. Ele usa uma camisa azul clara onde se pode ver o logótipo de uma marca que, se a camisa for genuína, deve ter custado algum dinheiro. Tem também óculos no alto da cabeça e as suas mãos estão colocadas à frente do corpo. É jovem e, segundo nos contam, era passageiro de um avião que fazia um voo doméstico no Egipto e que foi desviado, para o Chipre, pelo indivíduo que está ao seu lado na fotografia. Este, mais baixo, magro e com um ar frágil e muito menos feliz, posa com o casaco e camisa abertos mostrando o cinto de explosivos que afinal eram falsos. Seif El Din Mustafa, de seu nome, terá desviado o avião, porque queria “contactar a ex-mulher” que vive no Chipre. Chamou a sua atenção, certamente, numa atitude que não é inédita.Tirar uma fotografia com um dos passageiros facilmente se enquadraria na sua estratégia.
O que é estranho, nesta história, é a atitude daquele britânico que, mesmo não sabendo se os explosivos eram ou não reais (segundo afirmou, embora um pouco difícil de acreditar se olharmos para o sorriso que exibe), não quis perder a oportunidade de deixar um registo daquela situação para o futuro. E, caso o desfecho da situação fosse outro, ao menos os seus familiares poderiam dizer que o seu estado de espírito era muito mais positivo que o causador da situação que aparecia ali também a olhar a câmara de frente mas com um ar muito mais acabrunhado...
A vontade imensa de registar o que nos acontece que, parece-me, sempre existiu mas que agora é facilitada pelos meios que temos à nossa disposição; poderá levar às situações mais inusitadas. Esta é certamente uma e diz muito da forma como cada vez mais pessoas lidam com alguns acontecimentos que vão marcando estes dias.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Em dia de última ceia, a última cena...

Exactamente no último dia da Quaresma quando os cristãos comemoram o lava-pés e a última ceia de Jesus com os seus apóstolos revi um filme imenso. Daqueles que nos deixam cansados mas com a sensação que a poesia e a filosofia também podem ser mostradas no cinema. "Nostalgia" de Andrei Tarkovsky é um filme duro mas belo e intenso. A apresentação de Pedro Mexia acrescentou-lhe bastante. E foi bom ver o Nimas cheio numa noite em que os lisboetas já se preparam para um fim de semana grande. 

A última cena:


Esta é uma liberdade de post pois, na realidade, a última cena não é esta. É aquela em que a câmara se vai afastando deixando a personagem à beira de um pequeno lago, junto à sua casa da infância na sua Rússia natal estando todos os elementos, simultaneamente, dentro de uma catedral italiana em ruínas.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Uma certa "esquizofrenia" de linguagem

No novo cartaz publicitário um actor conhecido diz que confia no seu "ótico de família". Refere-se o cartaz ao Instituto Óptico.

quarta-feira, 16 de março de 2016

"O quando" da leitura

É uma autora que associo à minha maioridade. Não a que se liga à idade mas a que é reflexo de um crescimento interior. Este crescimento, feito por saltos, entre avanços e recuos, teve, no meu caso, uma fase de avanço na época em que a li. Dois dos seus livros, "Olhem para mim" e "Hotel du Lac" (comprados no mesmo dia na Feira do Livro) foram lidos entre 1989 e 1990. Há livros que não se recordam tanto pelo que são mas mais pela época em que os lemos e pelas circunstâncias vividas. Acontece isso mesmo com estes.  
Soube agora que Anita Brookner faleceu a semana passada. Em jeito de lembrança deixo uma passagem...
"... Foi então que vi o ofício de escrever como aquilo que era, e é, verdadeiramente, para mim. É a penitência que se faz pelo facto de não se ser feliz. É uma tentativa para alcançar os outros e fazer com que nos amem. É o protesto instintivo, quando se descobre que se não tem voz nos tribunais do mundo, e que ninguém falará por nós. Eu daria toda a minha produção de palavras, passada, presente e futura, em troca de um acesso mais fácil ao mundo, da permissão de dizer: «Eu magoo», «Eu odeio» ou «Eu quero». Ou «Olhem para mim», deveras. E isto nunca o desmentirei. Porque, uma vez conhecida, uma coisa não pode nunca mais ser desconhecida. Apenas poderá ser esquecida. E escrever é o inimigo do esquecimento, da irreflexão. Para o escritor não há qualquer olvido. Somente a infindável recordação."
in Anita Brookner, Olhem para mim, Editorial Teorema, 1988, pág. 95

Ministro-chefe da Casa Civil?

Não deveria ser antes... Ministro-chefe da Casa da Mãe Joana?

terça-feira, 15 de março de 2016

Uma família muito tradicional

Eu sei que fez parte da estratégia dirigida para dentro e fora do partido mostrar a nova líder como uma mulher de família (grande e unida) que, ao mesmo tempo, que comanda a estratégia do CDS, também é uma filha, irmã, mulher e mãe extremosa. Os inúmeros abraços, beijos, (e perguntas que os jornalistas fizeram questão de fazer) aos que lhe são mais próximos, quiseram demonstrar isso mesmo. O contraste com a reserva, a esse nível, do anterior líder é imenso.
Claro que tornar visível o lado familiar de um político não é nada de inédito, mesmo em Portugal. Mas, pelo menos de forma tão clara, não me lembro de tal coisa ter acontecido. Nomes, idades, anos de escolaridade frequentados, etc, dos filhos e sobrinhos, percursos de vida dos pais, a história pessoal com o seu marido, tudo foi apresentado (pelo menos no canal que vi). Os repórteres estavam muito contentes... 
Não pude deixar de pensar que, nesta tentativa de aproximação ao possível eleitorado, se é legítimo considerar que se poderá beneficiar de alguma empatia, esperando que os portugueses que vêem as imagens se identifiquem com aquela felicidade familiar ou aspirem a ela; isso só é capitalizável assumindo que é essa a imagem da família que ainda é preponderante na sociedade portuguesa. Ora todos os estudos indicam que aquela família que vimos ontem, com a sua dimensão e harmonia, com todos a comungarem dos mesmos ideais é cada vez mais rara. E não estou a questionar se é melhor ou pior que a minha ou outra qualquer. Sabemos que Assunção Cristas tem até posições políticas sobre a família que não são as tradicionais no seu partido. Mas a presença no fim de semana, em peso, da sua, apresentando-se de certo modo como o cânone da família conservadora, foi o elemento mais "centrista" de todo o congresso. 

Adeus, Senhor Contente

Tal como ele disse, "ninguém está preparado para a morte". Mas ela acaba por chegar. Hoje chegou para Nicolau Breyner. Todos nós o recordaremos sempre pelas personagens que ao longo da sua vida interpretou. E entre os vários géneros sobressaem os programas de comédia que, nos primeiros anos da RTP após o 25 de Abril, eram bastante inovadores, sobretudo no que toca aos textos.Vistas agora, muitas das situações que protagonizou nesses programas já não nos causam tanto riso. O ritmo da televisão agora é outro e podemos observar alguma ingenuidade na forma como determinados temas eram abordados. No entanto, também nós, os telespectadores, éramos ingénuos. Acreditávamos que uma vez que já se podia falar de certos temas com humor, na televisão, estaríamos mesmo a caminho de nos tornarmos mais felizes e contentes. E nesses primeiros anos de democracia, Nicolau Breyner ajudou-nos muito. Eu, criança, não perdia os seus programas. E tenho a certeza que eles me ajudaram a crescer e a fazer leituras mais humorísticas da realidade. 
Depois o seu percurso diversificou-se. Mas é ponto assente que em tudo o que fez foi um profissional e o seu sucesso faz parte da história do teatro, do cinema e da televisão em Portugal. 
Por tudo o que nos deu só nos resta agradecer e recordá-lo como ele queria: "com um sorriso, com carinho".
Aqui fica, com Eunice Muñoz, no Eu Show Nico:



sábado, 12 de março de 2016

A combinação de duas palavras...

...pode ser o suficiente para nos deixar bem dispostos. À minha volta, no comboio, devem ter achado que eu era tola, tal o sorriso ... Responsável foi esta passagem do livro Submissão de Michel Houellebecq:
"Talvez eu tivesse simplesmente fome, esquecera-me de comer na véspera, e talvez fosse melhor voltar para o hotel, sentar-me à frente de umas coxas de pato, em vez de me afundar entre dois bancos, vítima de uma crise de hipoglicémia mística." 

Papel de regulador. Literalmente.

Vai deixar de ser preciso ir a correr baixar o som da televisão nos intervalos. Já não era sem tempo...

quarta-feira, 9 de março de 2016

Onde está o Marcelo?

Esta minha tendência para defender quem está na mó de baixo tem destas coisas. Nunca gostei do presidente que os portugueses escolheram, por duas vezes, em eleições livres e democráticas, como se costuma dizer. Mas ele foi, com efeito, o mais votado nessas vezes. Agora está de partida e a verdade é que não me lembro de nenhum fim de mandato presidencial com tantas manifestações de satisfação, de júbilo. Mesmo nunca tendo votado nele e criticando tantas das decisões que tomou enquanto primeiro-ministro e presidente, sinto alguma pena quando o imagino a ler, a ouvir ou a ver algumas das coisas que se escrevem, dizem, desenham, por estes dias, sobre ele.
Perante tanto regozijo com a partida do seu antecessor, as expectativas em relação a Marcelo só podem ser altas. Porém, quando estas estão altas demais as desilusões são também maiores.
Mas não vamos, nesta fase, ser pessimistas. Mesmo não sabendo o que os próximos anos nos trarão temos um presidente novo. E hoje, mesmo quem não votou Marcelo, tem razões para estar contente com a partida de Cavaco Silva. É que, até no meio de tantos cavaquinhos, sobressai o machete de braga...



Sentada

                              Vilhelm Hammershøi, Interior with Ida in a White Chair, óleo sobre tela

quinta-feira, 3 de março de 2016

O dia imperfeito de Kafka...

... é uma perfeição literária.

"Estávamos talvez naquela pausa muito pequena e sossegada entre o dia e a noite em que a cabeça, sem que o esperemos, está presa ao nosso pescoço e em que tudo, sem que o notemos, está parado, porque não reparamos e depois desaparece. Em que ficamos sozinhos com o corpo arqueado, depois olhamos à nossa volta mas já não vemos nada, deixamos até de sentir a resistência do ar, mas agarramo-nos interiormente à recordação de que existem casas, a uma determinada distância, com telhados e felizmente também com chaminés bicudas através das quais entra o escuro para dentro das casas, que atravessa os sótãos até aos diferentes quartos. E é uma sorte amanhã ser um dia em que, por incrível que pareça, se conseguirá ver tudo."

"Conversa com o Bêbedo" in , Franz Kafka, Os Contos, 1.º Volume, Assírio e Alvim, 2004, págs. 339 e 340