domingo, 14 de março de 2010

Cúmplices

Estávamos no ano de 1980. Eu frequentava o 9.º ano numa escola secundária dos subúrbios de Lisboa. Muitos anos depois do início da construção, e com as obras paradas por longo tempo, a escola tinha sido inaugurada no ano anterior. Lembro-me perfeitamente de uma inscrição que durante alguns anos esteve num dos muros e que dizia: “a escola é tua; destrói a tua parte”.

Como praticamente todos os anos acontecia eu estava numa das piores turmas da escola, no que dizia respeito ao comportamento. Era o que dizia a directora de turma aos pais nas reuniões. Eu não dava por isso. O nosso comportamento não parecia muito diferente do das outras turmas. Lembro-me bem dos meus colegas. Havia os que estudavam muito, os que estudavam pouco, os que se comportavam bem, os que só queriam brincar, os mais exuberantes e aqueles que não queriam dar nas vistas. O Rui e o Nuno eram os que mais dores de cabeça davam e os que, simultaneamente, eram os mais populares.

Dos professores recordo alguns. A única que conseguia manter a turma em silêncio e a trabalhar era a de Físico-Química. Todos os outros passavam metade do tempo a mandar calar.

Nesse ano a opção da nossa turma era Saúde. A professora de Saúde era pequena, magra, frágil. Estava ainda a estudar medicina e era o primeiro ano que dava aulas. Percebia-se a sua inexperiência e a dificuldade em lidar com um grupo de miúdos que nem sempre sabia qual o seu lugar. Recordo-a muitas vezes em cima do estrado, com um ar assustado, sem saber qual a atitude a tomar perante as faltas de educação constantes. Um dia, perante mais um disparate qualquer, a professora disse ao Nuno para sair, com falta por mau comportamento. Ele, depois de ter estado durante algum tempo a argumentar e a dizer que não saía, desafiando a autoridade da professora, lá resolveu que sim, sairia, mas pela janela. A nossa sala habitual era num rés-do-chão e foi mesmo por lá que ele acabou por sair. Durante o tempo que esta situação durou a turma esteve entre o incrédulo e o divertido. Acho que todos acabámos por rir muito. De outra vez foi o Rui que, após uma pergunta da professora, dirigida a todos, pôs o dedo no ar e, perante a incredulidade de todos nós, perguntou-lhe se podia ir ao quadro desenhar um avião. Os vários nãos que ouviu não foram suficientes para o demover e ele acabou por se levantar e ir ao quadro desenhar um avião, perante a impotência da professora que o olhava sem saber o que fazer. Mais uma vez nós nos rimos bastante.

No terceiro período a professora de Saúde já não foi à escola. Soubemos que tinha tido uma depressão. Nunca mais esqueci esta professora e nunca mais esqueci o nosso riso, de alguma forma cúmplice, que sei que se repete de sala para sala, de escola para escola, de 1980 para 2010.

4 comentários:

  1. Também me recordo de ter tido uma professora de Francês, no oitavo ano que também era inexperiente e estava a dar aulas pelo primeiro ano. Num das primeiras aulas, a indisciplina na sala de aula, era tanta... que a professora desatou a chorar em plena sala! E chorou e chorou... ficámos incrédulos... e desabafou e desabafou... mas a turma, que até era composta de bons e razoáveis alunos, não se riu... nunca tínhamos visto semelhante e tocou-nos a todos o desabafo genuíno e a sua vulnerabilidade, pouco mais velha do que nós...e durante quase toda a aula se discutiu a sua insegurança e a forma como nós lhe tínhamos feito sentir a rir nas suas costas, facto que não nos tinha ocorrido... desde esse dia, criamos uma relação óptima com essa professora, foi uma óptima professora e ainda hoje, nos cumprimenta na Rua, dado que continua a viver nesta pequena cidade... julgo que nos lembramos todos desse episódio e ser viu para nos darmos conta dos efeitos verdadeiros nos professores mais vulneráveis. Apesar do modo, não ter sido nada ortodoxo, acabou por nos servir de lição... evidentemente, era aquela turma, noutra não sei o efeito... Beijinho e bom Domingo!

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  2. Olá, Ana :)

    Por todas as razões que hoje conhecemos, creio que devo dar-me por feliz por não ter tido nem professores nem colegas assim. Já me esquecia, mas foi apenas por alguns meses, que tive um professor de Matemática um pouco "louco" no antigo 7.º ano do Liceu (agora 11.º), mas o nosso comportamento era igualmente respeitador, como não podia deixar de ser naquela época :))

    Beijinho.

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  3. Muito bem recordado, Analima.
    Tão mau ou pior que isto só me recordo de um reitor ter desautorizado e depreciado o trabalho de um professor de inglês perante uma turma incrédula com o que ouvia. É verdade, miudos com 14 anos, estamos na década de 60, entenderam a violência que ali se verificara e no final solidarizaram-se com o professor verberando a atitude do dirigente do liceu.
    São dois lados da mesma moeda. De qualquer modo um problema difícil.
    Um abraço.

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  4. Olá a todos. Já percebi que todos nós temos memórias de situações que se relacionam com este tema. Nos vossos casos a consciência não vos pesa, como a mim, e ainda bem. Eu só queria lembrar que nesta questão da violência nas escolas todos temos culpa. Não podemos lançá-la toda para cima das entidades que tutelam a educação. É claro que o seu papel é fundamental. Mas e os colegas dos alunos com comportamentos violentos (contra professores ou outros alunos)? E os colegas dos professores que se queixam? E os pais dos alunos que praticam actos condenáveis? E os pais dos alunos que são vítimas? E todos nós que continuamos a ignorar estas situações e só falamos delas quando a comunicação social apresenta mais um caso extremo?

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