Ele empurra um carrinho. Daqueles quadrados, um pouco maior que um carrinho de mão, com duas rodas. Empurra um carrinho desde sempre. Tem a minha idade e empurra um carrinho. Todos os dias esteja sol, chuva, vento, pela estrada, por entre os automóveis. E sempre o boné na cabeça. E sempre as mangas compridas, mesmo com o Verão em pleno. Vi-o envelhecer, ganhar cabelos brancos. E o carrinho sempre a ser empurrado. Tantos os quilómetros diariamente percorridos. Muitas vezes a mãe acompanha-o. Seca. De roupa colorida. As meias até aos joelhos, o lenço atado na cabeça. Sempre ao seu lado mas sem nunca tocar no carrinho, como se aquele fosse propriedade intocável do seu filho, a única propriedade. Nunca os vi conversarem. Nunca os vi sorrirem. Caminham sempre como se soubessem bem onde vão, como se cumprissem um dever. São respigadores apanhando, recolhendo aquilo que os outros não querem, que deitam fora. E fazem-no com critério, seleccionando o que entendem ser digno de ser levado. Nunca saberemos porque o fazem. É um segredo só deles.
Uma escrita fina, curta e extremamente incisiva na abordagem dum certo instantâneo dum quotidiano anónimo; ou seja, gostei e desejo que o segredo assim se mantenha.
ResponderEliminarTambém gostei do recurso ao "respigadores".
Analima, a situação que descreve fez-me lembrar a de um homem, este sempre sozinho, que faz exactamente o mesmo entre Linda-a-Velha e Carnaxide, todos os dias, sejam quais forem as condições. E só ele saberá, como diz.
ResponderEliminarUm abraço.
gostei de ler o texto do carrinho. o segredo só deles, naquela "triste" vida, é o que os une, é o que os faz viver.
ResponderEliminarnão terá muito a ver, mas tem alguma coisa a ver: ouvi hoje na rádio à hora do almoço a leitura de duas "cartas a um poeta" de rilke, a propósito da arte e da criação, em que rilke diz que o criador sabe descobrir, encontrar nas mais pequenas e aparentemente desinteressantes coisas, beleza, interesse.
no caso do carrinho, será diferente, porque o interesse nas/pelas coisas respigadas, poderá resultar da necessidade de ter um objectivo, uma razão para viver.
Este post lembrou-me um filme fabuloso. Chamava-se precisamente "Os Respigadores"
ResponderEliminarFerreira-Pinto: ainda bem que gostou. Quanto ao segredo ele será mantido, certamente.
ResponderEliminarMaria Josefa: e não será o mesmo? Vejo-o todos os dias, pela manhã, em Linda-a-Velha ou em Algés. Umas vezes acompanhado, outras só.
ResponderEliminarJosé Diogo: obrigada pela visita e pelo seu comentário. Para mim são exactamente as pequenas coisas, os pormenores, que frequentemente despertam a minha atenção. Vou ler com atenção as cartas de Rilke.
ResponderEliminarCarlos: não deve ter sido por acaso que me surgiu a palavra respigadores. "Os respigadores e a respigadora" também é um filme/documentário de que gosto muito.
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