sábado, 19 de dezembro de 2009

“A política como vocação” (continuação VII - fim de citação)

“As diversas éticas religiosas acomodaram-se de diferentes modos ao facto de vivermos integrados em organizações vitais distintas, governadas por leis distintas entre si…

… A corrupção do mundo pelo pecado original permitia, com relativa facilidade, introduzir a violência na ética como meio para combater o pecado e as heresias que põem a alma em perigo…

…não foi a moderna falta de fé, nascida do culto renascentista pelo herói, que suscitou o problema da ética política. Todas as religiões, com êxito muito variável, lidaram com ele… A singularidade de todos os problemas éticos da política é, única e exclusivamente, determinada pelo seu meio específico, a violência legítima nas mãos das associações humanas.

… Quem quiser impor a justiça absoluta sobre a terra valendo-se do poder necessitará de partidários, um “aparelho” humano. Para este funcionar tem de lhe pôr diante dos olhos as necessárias recompensas morais e materiais… O chefe depende para o seu triunfo do funcionamento deste aparelho, dependendo portanto dos motivos do aparelho e não dos seus próprios. Tem pois que assegurar permanentemente essas recompensas para os partidários de que necessita… em toda e qualquer organização submetida a uma chefia, uma das condições do êxito é o empobrecimento espiritual, a coisificação, a proletarização em prol da disciplina. É pois coisa habitual que o partido triunfante de um caudilho se transforme com especial facilidade num grupo, absolutamente vulgar, de prebendados.

Em geral, quem quiser fazer política e, muito em especial, quem quiser fazer política como profissão, deverá tomar consciência destes paradoxos éticos e da sua responsabilidade pelo que ele próprio, submetido à pressão desses paradoxos, pode chegar a ser…

É verdade que a política se faz com a cabeça mas de modo algum apenas com a cabeça. E neste ponto têm toda a razão os que defendem a ética da convicção. No entanto ninguém pode determinar se se deve agir de acordo com a ética da responsabilidade ou de acordo com a ética da convicção, nem quando de acordo com uma ou com outra… quando nestes tempos… vejo aparecer subitamente os políticos da convicção… a primeira coisa que faço é auscultar a “solidez interior” que existe por detrás desta ética da convicção. Tenho impressão que em nove de cada dez casos me encontro frente a odres cheios de vento que não sentem nada do que estão a fazer, mas que, unicamente se incendeiam com sensações românticas. Humanamente isto pouco me interessa e não me comove absolutamente nada. Pelo contrário, é infinitamente comovedora a atitude de um homem maduro (de muitos ou poucos anos, isso não importa), que sente realmente e com toda a sua alma essa responsabilidade perante as consequências e actua de acordo com uma ética de responsabilidade, e que, ao chegar a um certo momento diz: “nada mais posso fazer, é aqui que paro”. Isto sim é algo de autenticamente humano e toca-nos fundo… Deste ponto de vista a ética da responsabilidade e a ética da convicção não são termos absolutamente opostos, mas sim elementos complementares que devem concorrer para formar o homem autêntico, o homem que pode ter “vocação política”…

A política consiste numa dura e prolongada penetração através de tenazes resistências e para ela se requer, ao mesmo tempo, paixão e medida. É absolutamente certo, e assim o prova a história, que neste mundo nunca se consegue o possível se não se tentar, constantemente fazer o impossível. Mas para ser capaz de o fazer é necessário ser não só um caudilho mas também um herói no sentido mais simples da palavra… Só quem está certo de não desanimar quando, segundo o seu ponto de vista, o mundo se mostra demasiado estúpido ou demasiado abjecto para o que ele tem a oferecer; só quem, face a tudo isto, é capaz de responder com um “no entanto”; só um homem assim formado tem “vocação” para a política.” (págs. 89 a 99)

(o negrito é meu)

4 comentários:

  1. Como diz Espinosa,
    nas palavras finais da Ética,


    «Com certeza deve ser árduo aquilo
    que muito raramente se encontra»

    «Mas todas as coisas notáveis
    são tão difíceis como raras»


    :)

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  2. Espinosa era de facto um caso raro e com um pensamento notável! Ainda bem que estes pensadores nos deixam escritos destes.

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  3. Excelente conjunto de posts, Ana.

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  4. Rui: como já aqui disse, desde que li este texto pela primeira vez e ao longo destes anos muitos foram os momentos em que o recordei e ele nunca perdeu actualidade. Tenho a certeza que todos os que pretendem ter alguma ligação ao mundo da política deveriam lê-lo com atenção.

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