quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

“A política como vocação” (continuação V)

“Pode dizer-se que são três as qualidades decisivamente importantes para o político: paixão, sentido da responsabilidade e medida. Paixão no sentido de… entrega apaixonada a uma causa… A paixão não transforma um homem em político se não estiver ao serviço de uma causa… Para tal é necessária (e é esta a qualidade psicológica decisiva para o político) medida, a capacidade para deixar que a realidade actue sobre a pessoa sem por isso perder o domínio e a tranquilidade, ou seja, para manter a distância em relação aos homens e às coisas. O não saber guardar distâncias é, para qualquer político, um dos pecados mortais; sabê-lo é uma dessas qualidades cujo esquecimento condenará a nossa actual geração de intelectuais à impotência política. O problema reside precisamente em como conseguir que existam juntas, nas mesmas almas, a paixão ardente e a frieza medida. A política faz-se com a cabeça e não com outras partes do corpo ou da alma. E, no entanto, a entrega a uma causa só pode nascer e alimentar-se da paixão para ser uma atitude autenticamente humana e não um frívolo jogo intelectual. Só o hábito da distância (em todos os sentidos da palavra) torna possível o enérgico domínio sobre a alma que caracteriza o político apaixonado e o distingue do simples diletante político, esterilmente agitado. A força de uma personalidade política reside, em primeiro lugar, na posse destas qualidades.

Por isso tem o político que vencer em cada dia e em cada hora um inimigo muito trivial e demasiado humano, a tão comum vaidade, inimiga de toda a entrega a uma causa e de toda a medida, neste caso particular da medida perante si próprio.

A vaidade… talvez ninguém esteja livre dela. Nos círculos académicos e científicos é uma espécie de doença profissional. Mas precisamente no homem de ciência, por muito antipáticas que sejam as suas manifestações, a vaidade é relativamente inócua dado que, em geral, não estorva o trabalho científico. No político, que utiliza inevitavelmente como arma o desejo do poder, os seus resultados são muito diferentes. O instinto de poder, como se lhe costume chamar, está… entre as suas qualidades normais. O pecado… começa no momento em que este desejo de poder deixa de ser positivo, deixa de estar exclusivamente ao serviço da causa para se converter em pura embriaguez pessoal. Em última análise, só existem dois pecados mortais no terreno da política: a ausência de finalidades objectivas e a falta de responsabilidades. Esta coincide frequentemente, embora não sempre, com aquela. A vaidade, a necessidade de aparecer em primeiro plano sempre que seja possível, é o que mais leva o político a cometer um destes pecados ou os dois ao mesmo tempo… A sua ausência de finalidade objectiva torna-o propenso a procurar a aparência brilhante do poder em vez do poder real; a sua falta de responsabilidade leva-o a gozar o poder pelo poder, sem tomar em conta a sua finalidade. Embora o poder seja o meio iniludível da política, ou mais exactamente, precisamente porque o é, e o desejo de poder seja uma das forças que a impulsionam, não há mais perniciosa deformação da força política que malbaratar o poder como um adventício ou comprazer-se vaidosamente no sentimento de poder, ou seja, em geral, toda a adoração do poder puro enquanto tal. O simples político do poder… poderá actuar energicamente, mas actua de facto no vazio e sem qualquer sentido” (págs. 74 a 77)

(o negrito é meu)

6 comentários:

  1. .

    Notável! Gostei da referência à qualidade da medida, do distanciamento em relação aos homens e às coisas, «deixar que a realidade actue sobre a pessoa», mantendo o domínio próprio no rumo estratégico adoptado.

    Péricles, que governou dez a vinte anos, deu nome a todo um século! E decretou leis que inclusivamente o prejudicaram pessoalmente, na área pessoal de afectos!

    O naturalismo de um Maquiavel é imprescindível, pelo menos, para avaliar objectivamente o curso da sociedade e o impacto real que as medidas políticas vão provocar no rumo dos eventos e tendências de comportamento.

    Isto aceito, reitero que nenhum dirigente de craveira notável governa sem o apoio da elite científica e cultural do seu tempo; assim como Péricles teve Anaxágoras a seu lado, assim qualquer governante lúcido do século XXI deve rodear-se dos que sabem e só aceitar partidos em que «os que sabem» ocupem pelo menos 1/3 dos cargos dirigentes.

    :)

    .

    ResponderEliminar
  2. Muito oportuna esta análise sobre os políticos, quando é dominante o descrédito, que os mesmos inspiram, por «muitos erros e má fortuna»!...Gostei de ler e aprendi também!...
    Um abraço,
    Manuela

    ResponderEliminar
  3. Vasco: eu logo vi que estes excertos iriam ser do teu agrado :)

    ResponderEliminar
  4. Manuela: este texto, desde que o li pela primeira vez, sempre esteve presente na minha memória. É que, tal como já disse, sendo uma análise muito global, ele é, de facto, de uma actualidade impressionante.

    ResponderEliminar
  5. Olá,
    eu também tenho passado por aqui no comboio que aproxima, o do Vale da Fumaça.
    Não tendo qualquer ascendente lisboeta acho pode ser-se de Lisboa e gostar do Porto. Ou ser do Porto, repelir as élites político-financeiras lisboetas, e gostar da Lisboa cidade.
    Cumprimentos

    ResponderEliminar
  6. Carlos: obrigada pela visita. Concordo consigo. É a importância que damos aos lugares e não a importância que eles têm que interessa (se bem que no caso do Porto e de Lisboa essa segunda importância é também grande).
    Quanto às elites de que fala elas estão centralizadas em Lisboa mas vêm de todo o país pelo que a sua associação à cidade se deve "apenas" ao facto de ela ser a capital.

    ResponderEliminar