quinta-feira, 29 de julho de 2010

Mocidade

"Não preciso de vos contar o que é bater caminho numa embarcação descoberta. Recordo noites e dias de calma em que remámos, remámos e a canoa parecia parada como se um feitiço a mantivesse presa àquele círculo de mar. Recordo o calor, o dilúvio de aguaceiros que obrigava a baldeações para salvarmos a pele (mas ao menos enchiam o nosso barril) e dezasseis horas sem fim, de boca seca como cinza e com um remo à popa para moderar a rebentação contra o meu primeiro comando. E ainda não tinha descoberto que afinal eu era aquilo a que pode chamar-se um homem! Recordo as caras desanimadas, as figuras abatidas dos meus dois tripulantes, recordo ainda a mocidade que eu tinha e uma sensação que nunca mais voltei a sentir… de poder viver sempre, sobreviver ao mar, ao céu e aos homens; a sensação enganosa que nos arrasta às alegrias, aos perigos, ao amor, ao esforço inútil…à morte; a convicção triunfante de termos força, o calor da vida numa mão cheia de pó, aquela chama do coração que ano após ano esmorece, esfria, encolhe até se apagar de todo… e se apaga cedo, muito cedo… antes da própria vida."

in Joseph Conrad, Mocidade (Uma narrativa), Assírio & Alvim, Lisboa, p. 66-67

6 comentários:

  1. Mas por vezes apenas aparenta ter-se apagado de vez. Pode ficar esmorecida sobre a forma de braza revestida a cinza, à espera e pronta para que uma suave brisa ou a mais tempestiva das ventanias a reacenda. Quantos reacendimentos inesperados há por aí.

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  2. Sim, A.C., eu que sempre digo que tudo é possível, acredito nessa possibilidade.

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  3. Apesar do livro em si não me ter deixado muito entusiasmada, também gostei desta passagem, Daniel.

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  4. Pensar que ele só aprendeu Inglês aos 18 anos e mesmo assim escreveu aqueles livros...

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  5. É verdade, Carlos. E, pelo que li, apesar de escrever tão bem nunca conseguiu falar bem inglês. :)

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