segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

As nossas ruas

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,...

Penso muitas vezes nestes versos do início de "O Sentimento dum Ocidental" quando, ao entardecer, ando nas ruas da localidade onde moro. Numa altura do dia em que tanta gente regressa a casa é estranho ver as ruas vazias. As pessoas estão lá, mas dentro dos automóveis, fechadas naquele que é o maior consumidor de espaço pessoal e público que o homem jamais inventou. Ele devora os espaços que poderiam servir para contactos e encontros. Não só as pessoas já não têm vontade de andar a pé como aquelas que efectivamente o desejam, ou não arranjam facilmente sítio onde o fazer, por os espaços estarem ocupados com carros estacionados; ou porque as ruas desertas as desencorajam.
Quando andamos a pé aprendemos a conhecer-nos entre nós quanto mais não seja de vista. O automóvel tem o efeito contrário sobre as relações humanas pois afasta os seus ocupantes do mundo exterior. Além disso esbate também a sensação do movimento no espaço, confundindo os pormenores do ambiente circundante imediato, pela velocidade. O automóvel, portanto, isola o homem do seu ambiente, bem como o afasta de contactos sociais. Permite apenas os tipos de relações mais elementares que põem muitas vezes em jogo a competição, a agressividade e os instintos de destruição.
Vários estudos demonstram que, actualmente, uma grande parte dos jovens não sabe andar a pé nas cidades. Pura e simplesmente porque não o fizeram desde pequenos. Em crianças era o carro dos pais que os transportava, mais tarde o seu. E entretanto ganharam medo pois falta-lhes a segurança de quem descobre alguns caminhos por si próprio. Os trajectos são muito mais reduzidos. São feitos de sentidos obrigatórios. E só esses são os conhecidos. As crianças, em grupos, já não vão da escola para casa, da casa para a escola. São as carrinhas dos "ATL's" ou os carros dos pais que as vão buscar, adensando o círculo vicioso que liga passeios quase desertos ao medo de andar a pé.
A harmonização da escala humana e da escala do automóvel coloca um problema a ter em conta pelos que intervêm na cidade mas o usufruto dos espaços públicos por todos nós não deve ser restringido apenas aos que estão definidos como áreas de lazer pois as ruas também fazem parte da cidade e circular nelas deve ser um prazer.

10 comentários:

  1. Já para não falar que hoje já quase não é possível jogar à bola ou fazer qualquer outra brincadeira na rua.
    No meu bairro, contudo, um bairro residencial feito de gente idosa ou nova, mas apenas remediada, a rua ainda apresenta paisagens semelhantes à da Lisboa da minha infância (onde os carros eram bem menos).
    Gostei muito deste post, sobretudo da chamada de atenção para as consequências mentais e vivenciais dos caminhos e da forma como os percorremos.

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  2. Vivemos numa sociedade que não sabe viver sem algumas coisas, o automóvel é um delas.

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  3. Por isso comprei um carro de sete lugares, assim quando saio com os amigos vamos todos juntos conversando...

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  4. Por aqui também ainda se consegue brincar na rua ou andar de bicicleta, A.C., mas são cada vez menos as crianças que o fazem.

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  5. O automóvel é, de facto, importante. Mas daí até não se explorarem as alternativas vai um grande passo, Daniel.

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  6. Não é má ideia, não senhor, Manuel. Mas, no meu caso, por exemplo, o meu grupo de amigos teria que ser mais restrito. :)

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  7. Vivo numa cidade alemã considerada pequena (Stade, 40 000 habitantes) e por aqui também se abusa do carro. Mas ainda há muitos grupos de crianças a ir para e a vir da escola a pé. Todos os meus vizinhos mandam os filhos para a escola a pé ou de bicicleta, desde a 1ª classe (mesmo com temperaturas negativas)! Na nossa rua, brinca-se muito, aliás, é a chamada "rua de brincar" (Spielstrasse, não sei se existe em Portugal), em que a velocidade máxima é a de passo, ou seja, não pode passar dos 10 km/h! Prioridade às crianças! Regra geral, cumpre-se.

    Eu ando muito a pé com a minha cadelinha, mesmo quando chove (que remédio ;)

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  8. Um bom exemplo, esse, Cristina. A educação das crianças também passa por ensiná-las a utilizar o automóvel apenas quando ele é necessário. E apesar de ainda haver algumas ruas utilizadas como local de brincadeiras para crianças, esse conceito de rua de brincar cá não existe. Mas parece-me uma ideia muito interessante. :)

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  9. Sim, até há um sinal de trânsito próprio, que, sinceramente, não sei se faz parte do código português. Hei-de averiguar...

    Claro que isso também só é possível em ruas pequenas, onde, de princípio, não haja muito trânsito. Mas, em zonas exclusivamente habitacionais, mesmo nas grandes cidades e em ruas mais concorridas, costuma haver um limite de 30 km/h.

    Em Portugal, também faltam as faixas para as bicicletas (normalmente incluídas nos passeios), o que torna o uso deste meio de transporte muito perigoso para crianças.

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  10. Algumas das razões são válidas, muitas não, mas aqui ainda é o automóvel que impera. Felizmente já há alguma coisa a mudar. Devagarinho...

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