Tinha perto de 80 anos. Da sua terra, no Minho, já só recordava que a tinha deixado há muito tempo. Estava em Lisboa há 60 anos. Tinha vindo servir. E tanto tinha servido que não tinha sobrado tempo para aprender a ler, a escrever, a ser. A família com que ainda sonhara não chegou a acontecer. Era aos filhos dos outros que lavava a roupa, que a passava. Era para eles que cozinhava. Mais tarde, quando o corpo deixou de colaborar neste jogo do faz de conta, a reforma. E ao rendimento miserável vinha agora juntar-se a enorme constatação de que estava só. No edifício onde vivia era a única moradora. Os outros tinham já morrido. Para chegar à sua casa, no último andar, passava por várias portas fechadas que nunca se abriam. Foi no Centro de Dia que encontrou alguma animação para os seus dias sempre iguais. Era lá que as tarde eram passadas. Com outros homens e mulheres, muitos igualmente sós, partilhava a dificuldade, cada vez maior, em manter a nitidez das suas lembranças. Um dia não foi. Ao segundo estranharam a sua ausência. Quando foram verificar encontraram-na. Tinha morrido na sua casa, depois de ter subido os degraus carcomidos uma última vez. A sua casa continua na mesma. Os sobrinhos, que não a viam há anos a mais, nada quiseram dos seus pertences. Coisas que a eles nada diziam. Nem as fotografias antigas onde a tia, em dias distantes de felicidade, sorria.
À memória da D. Aurora
A solidão apenas é um drama se não for desejada... Ninguém é obrigado a ter companhia! E mesmo a família, para quem a D.Aurora nada representava, representaria algo para a D. Aurora? RIP...
ResponderEliminarUm retrato demasiado fiel de muitas Donas Auroras. A maioria, sem homenagem póstuma, e sem sequer obituário nos jornais.
ResponderEliminarA assim, a D. Aurora continua a viver no 3º mundo.
ResponderEliminarTens razão, António. Neste caso concreto não sei como se sentiria esta senhora perante a sua situação, nem qual a sua relação com a família. Cruzei-me com ela, por motivos profissionais, só uma vez. Deixou-me uma grande impressão. Por exemplo, o facto de estar sozinha e não saber ler dificultava imenso a sua vida. Da sua morte soube depois.
ResponderEliminarSim, há, de facto, muitas pessoas nesta situação, Eva.
ResponderEliminarNão sei se estás a falar de Popper mas vais ter que explicar.... A. C.
ResponderEliminarTriste retrato. Bonita homenagem. Só conheci a solidão da casa e, agora, lamento não ter conhecido a D. Aurora. :(
ResponderEliminarA verdade é que não se chamava Aurora. E acho que não faz mal dizer que era Maria de Jesus. :)
ResponderEliminarà memória da D. Aurora e de todas as Auroras solitárias que vivem uma solidão tremenda nesta sociedade cada vez mais desumana.
ResponderEliminarOlá, Aurora. Seja bem vinda.
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