sábado, 18 de dezembro de 2010

O "comunista"

Hoje cruzei-me com ele. Mais velho, mas a mesma figura de sempre. Baixo, com a barriga proeminente, com a roupa que me parece ter usado sempre. E a boina basca que usou toda a sua vida e que só levantava ligeiramente para limpar o suor que lhe escorria da testa enquanto trabalhava. Era canalizador e, numa altura em que os problemas com as canalizações eram frequentes, lá andava ele, de vez em quando, muitas vezes à noite, a fazer biscates pelas casas das redondezas. Ele morava numa rua ali perto e todos os dias o via vir do trabalho. Gostava de o ver passar. Caminhava devagar como se não tivesse pressa, com a sua mala preta que o acompanhava sempre. Já só o via regressar pois quando saía de manhã era certamente muito cedo.
Depois de 74 encontrava-o à porta do mercado, ou da Academia Recreativa, a distribuir panfletos. Antes de Abril desse ano só a sua imagem misteriosa, sempre sozinho, sempre calado, aguçava a minha imaginação de criança. Porque todos os vizinhos diziam, uns com desdém, outros com admiração, que ele era comunista. E ele, com a sua postura muito discreta, não precisava de o negar ou confirmar. Limitava-se a passar com a sua mala e a sua boina. Foi o "meu primeiro comunista".

2 comentários:

  1. Nostálgica... :)

    Mas as coisas são bem difíceis
    e não se resolvem nem com emoções
    nem à força! Apenas com muito atenção
    e perspicácia a entender e a experimentar
    o mundo e as opções inteligentes. Aceitando,
    por certo, a dinâmica das classes laboriosas
    e instruídas, controlando e punindo os vígaros,
    mas sempre reconhecendo que nenhuma
    sociedade é digna se não assegura

    «o livre desenvolvimento de cada um
    como condição
    do máximo desenvolvimento de todos».

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  2. Um pouco nostálgica, sim. :) E de acordo com o comentário. :)

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