sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

À rapariga que passa por mim quase todos os dias

Serpenteia por entre os automóveis de uma forma que só parece acessível a um artista de circo. Quer chova, quer o calor aperte. Não sei para onde vai mas sei que chega sempre primeiro. Gosto especialmente da forma como aperta o cabelo com um elástico enquanto pedala a grande velocidade.


Elogio Barroco da Bicicleta

Redescubro, contigo, o pedalar eufórico
pelo caminho que a seu tempo se desdobra,
reolhando os beirais - eu que era um teórico
do ar livre - e revendo o passarame à obra.

Avivento, contigo, o coração, já lânguido
das quatro soníferas redondas almofadas
sobre as quais me estangui e bocejei, num trânsito
de corpos em corrida, mas de almas paradas.

Ó ágil e frágil bicicleta andarilha,
ó tubular engonço, ó vaca e andorinha,
ó menina travessa da escola fugida,
ó possuída brincadeira, ó querida filha,

dá-me as asas - trrrim! trrrim! - pra que eu possa traçar
no quotidiano asfalto um oito exemplar!

Alexandre O´Neill
in Poesias Completas, Assírio & Alvim

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Ciclos

E pronto! Este já acabou... É grande a sensação de alívio quando chega ao fim este dia. Sabemos então que, só para o ano, voltaremos a ter dias como estes. Cheios de frenesim consumista, das canções de sempre em inúmeras versões, do convívio mais ou menos forçado, dos ataques de gula incontrolável perante doces que ameaçam o nosso bem-estar, do choro contido perante a lembrança de alguém que já não está. No entanto, essa certeza da repetição, de alguma forma, reconforta-nos. É o mito do eterno retorno que mantém tudo no seu lugar e que nos dá uma sensação que, ao testemunharmos a renovação contínua de determinadas práticas (sejamos nós ou não religiosos), viveremos para sempre. Pelo menos mais um ano. Até ao próximo Natal.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Um Natal ao contrário

Estende uma das mãos como qualquer outro pedinte. Estão muitas pessoas na rua e ele vai de um lado para o outro tentando convencer alguém a dar-lhe alguma coisa. Um homem chama-o e coloca na sua mão algo que eu não vejo mas que ele se apressa a guardar no saco. É um saco grande mas pouca coisa tem lá dentro. O fato vermelho debruado a branco, que veste, está-lhe um pouco largo e o gorro não assenta bem. 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Próxima paragem: mudar a nossa vida

Não gosto de falar do que não sei. E realmente não sei bem o que se passa com os comboios da linha de Cascais. 
No Verão do ano passado chegavam as notícias da supressão temporária de comboios (por exemplo, aqui) que, tal como se esperava, passou a definitiva. Determinadas notícias davam conta de um fim previsível. 
Em Novembro também do ano passado falei aqui sobre este assunto.
Nesta última semana, depois do serviço se ter vindo a deteriorar, mais supressões têm acontecido. Comboios cheios, espera à chuva, informações inexistentes, passageiros confusos...
Entretanto a notícia da concessão a privados. Se, em princípio, essa ideia me causa estranheza, pior ainda é a sensação de que a nossa vida vai mudar, sim. Mas não posso deixar de pensar que não será para melhor...



sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Bolas de sabão


Tinha já anoitecido.  Àquela hora as pessoas caminhavam depressa pelos passeios. Também eu fazia o mesmo. Subitamente um ponto de luz que se move chama-me a atenção. E depois outro. Eram pequenas bolas de sabão. Saíam de um daqueles frasquinhos cuja tampa as permite modelar, soprando. Quem se apercebia parava e acompanhava-as, com o olhar, até se desfazerem no chão. A rapariga também avançava pelo passeio. Mas um pouco mais devagar. Era ela que soprava. Tinha um sorriso nos lábios enquanto o fazia. Parecia contente consigo mesma. Como se distribuísse felicidade, consciente do poder de simples bolas de sabão. 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Já lá vão 16 horas do dia

Mesmo assim, ainda estão a tempo de aproveitar as dicas .
Nesta época de dificuldades há até uma receita para os que desejam atrair dinheiro: "banho, com diversos condimentos, seguido de orações. “Sete galhinhos de salsinha, sete cravos da índia, sete pedaços de canela em pau, três folhas de louro e um pitada noz-moscada. Ferver tudo em um litro de água e jogar no corpo. Não seque. Depois reze um pai-nosso e três ave-marias”.
Mas não comecem já a tentar perceber se salsinha é o mesmo que salsa, ó almas pecadoras... É que "somente as almas de quem segue o caminho do bem estão preparadas para esta nova fase".

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Centro Comercial

A meio do dia de trabalho, chegada a hora do almoço, abrem a mesa portátil e as cadeiras e a comida é posta de forma a que todos possam comer sem que se perca muito tempo. Entre as caixas de papelão e a mercadoria exposta são indiferentes a quem passa, aos olhares curiosos de uns e aos mais tímidos de outros, incomodados por entrarem, mesmo sem querer, no quotidiano da família. 

sábado, 1 de dezembro de 2012

Entre o teatro e o cinema: a vida

Cosimo Rega, há 34 anos numa prisão de alta segurança perto de Roma, diz, lá para o final do filme (mas logo no início do trailer): "agora que conheço a arte, esta cela tornou-se uma prisão". Condenado a prisão perpétua por crimes graves, participou, com outros presos, nesta experiência teatral que, filmada numa perspectiva documental mas ao mesmo tempo poética, nos deixa com a sensação de termos assistido a momentos únicos pois sabemos que, para além das imagens que os realizadores escolheram para nos mostrar, estão ali as vidas reais de quem assumiu, como uma redenção, a participação naquela peça. Aquele grupo de homens, em situação de reclusão, entrega-se, por inteiro, a um texto, a uma encenação, a uma alteração do seu quotidiano que, mesmo sendo ficção, vai muito para além das celas, a que obrigatoriamente têm que se recolher quando chega a hora. Por isso aquelas imagens são poderosas. Por isso as sentimos tão intensamente. 
É ainda Cosimo que explica: "Não me bastava sobreviver à prisão. Eu queria viver. Foi por isso que fiz teatro. Porque um detido é antes de tudo um homem, com as suas emoções, os seus medos. E as suas dores. Nós somos pessoas que têm o direito e o dever de se redimir, para demonstrar, para lá daquilo que fizemos, toda a nossa humanidade. " Tradução de um extracto desta entrevista.
Já vi este filme há umas semanas mas ainda não tinha tido oportunidade de falar sobre ele. Não podia, no entanto, deixar de o fazer. Nem que fosse para registar que o cinema ainda pode ser algo de novo.