terça-feira, 8 de novembro de 2011

Ciclos

Mais do que os enfeites em espaços comerciais, que já estão aí, o dia em que "o homem do lixo" bate à porta é um sinal de que entrámos na época natalícia. E hoje, estava eu a fazer o jantar, lá apareceu um funcionário da autarquia com o seu fato laranja a entregar um papelinho, que já foi um cartão mas que agora é apenas um pedacinho de papel mal cortado, onde vemos um pai natal e uma fotografia de uma camioneta do lixo, modelo de brinquedo. O texto diz invariavelmente o mesmo, de ano para ano: "o pessoal da camioneta de recolha do lixo deseja a V. Exa. e família um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo". Mas este ano não me limitei a dar a minha pequena contribuição da praxe e dei também uns dedos de conversa. O Sr. Daniel, assim se chama, trabalha há 30 anos na câmara. Já conheceu dois presidentes, muitos vereadores, chefes, técnicos. Queixou-se de que ninguém quer fazer o trabalho que ele faz. Mas há que aguentar que "isto está mau". Os 475 euros por mês chegam-lhe para pagar a renda de uma casa num bairro social e contribuem para a sobrevivência da família agora reduzida a duas pessoas desde que as suas filhas constituíram, elas próprias, uma família. Do passado recorda a noite fatídica, num dia de 1979, em que a tempestade lhe levou o seu bebé de 7 meses, arrastado numa vertente junto a um dos faróis, ali mesmo na Marginal, onde ficava a barraca onde viviam. A imagem de um rapaz de 18 anos com o bebé nos braços e da sua mulher de 15 a fazerem sinal aos carros para pararem numa tentativa desesperada de salvamento deixou-me uma forte impressão. E, no entanto, foi o seu sorriso que mais marcou toda a conversa. Mesmo quando contou que o presidente da Câmara da altura, em visita ao local, não encontrou nada melhor para dizer a não ser que a vista daquele sítio para o rio devia ser uma maravilha no Verão. 
No fogão os meus tachos reclamavam atenção. Despedi-me com o tradicional "boas festas". E ele lá seguiu para bater a outra porta, depois de me dizer um "até para o ano" que, mesmo com as dificuldades que aí vêm, terá também um Natal. E tenho a certeza que, se se mantiver na recolha do lixo, e apesar de todas as dificuldades, o Sr. Daniel tocará à minha porta com um sorriso e um papelinho na mão.

3 comentários:

  1. bom momento... aliás, qualquer encontro com um senhor com esse nome é sempre um bom encontro.

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  2. E eu a querer fugir do mundo real... Tão pateta!
    Ainda para mais fui ao cinema e vim de lá triste, muito triste. Restless-Inquietos, de seu título, foi o filme que me deixou assim. Agora não consigo escrever no meu blogue.

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  3. Também fui ontem ver o filme... Triste, sim. Bonito, ao mesmo tempo. :)

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