Um filme ou, neste caso, um documentário, pouca diferença faz.
Lampedusa, a ilha, torna-se cenário, não por escolha de um realizador, mas por ser ali que se desenrola uma das mais penosas realidades dos nossos dias. De todos os que tentam chegar à Europa muitos são os que nunca chegam a embarcar na direcção desta ilha. Uns ficam no deserto numa travessia que, com poucos meios, frequentemente é fatal. Outros não conseguem ultrapassar a Líbia, as suas prisões e os maus-tratos. Para os que conseguem juntar o dinheiro necessário para pagar a quem organiza as viagens para o desconhecido, entrar naqueles barcos é uma etapa chave. Fugir de uma vida indescritível na sua dureza e onde a morte parece querer levar sempre a melhor leva a considerar possível aguentar as condições da viagem. Mas a verdade é que, para muitos, sobretudo para os mais pobres que só têm dinheiro suficiente para ocupar os fundos daqueles barcos (mais uma vez o dinheiro como factor determinante), é exactamente a morte que encontram neste caminho entre dois continentes, um que não os quis e outro que não os quer.
Lampedusa não tem importância nenhuma para os mortos que ficam pelo caminho. Mas também pouca diferença faz para os milhares de pessoas que, depois de inúmeras provações, ali chegam em condições deploráveis e que são registados e enviados para outro sítio, que o espaço ali é limitado. Os barcos que os recolhem, as camionetes que os transportam, os centros de acolhimento que os recebem, estão ali como podiam estar em qualquer outro lugar que ficasse a meio de um caminho de fuga e esperança.
Mas para as pessoas que vivem na ilha, Lampedusa é a sua casa, lugar das suas memórias. Os campos açoitados pelo vento, o mar, fonte de riqueza que sempre fez parte da sua história, os locais de brincadeira, a estação de rádio local com uma relação de proximidade feita de muitos programas de discos pedidos. Aqui a vida corre como sempre, sem grandes sobressaltos. As recordações negativas que o mar traz são associadas ao duro trabalho da faina da pesca ocupação que, para os mais pobres, se traduz numa vida de sacrifícios e de receios acerca do futuro. A vinda de migrantes que ali chegam à Europa já não é novidade. Mas só nestes últimos anos, a dimensão desse fenómeno se tornou avassaladora.
No documentário só o médico de Samuele, rapaz da ilha a quem acompanhamos do princípio ao fim, parece tocado pela realidade da chegada destes homens, mulheres e crianças a quem pouco interessa o nome do local. No seu caso, porque lida directamente com a situação, é ferido intensamente por ela e apercebemo-nos que as marcas que deixa serão impossíveis de ultrapassar. Mesmo assim, na sua actividade de médico local, nada deixa transparecer. Parece querer proteger dele todos os que não testemunham o horror vivido ali tão perto.
Mesmo assim, quer os que vivem na ilha quer os que, como nós, só vêem as imagens pela televisão não podem ficar indiferentes. Mas nunca temos a verdadeira noção do que realmente se passa. E este documentário aprofunda essa noção. Mesmo que não fosse por mais nada já valia a pena vê-lo.
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